Estávamos dizendo
Contemporâneo do nosso LuÃs de Camões, o agostiniano Frei Luis de León foi um filósofo, teólogo e poeta humanista espanhol. Cristão-novo, foi perseguido pela Inquisição 1 e, por causa da denúncia de um professor de Grego seu colega em Salamanca, esteve preso mais de quatro anos. Um dos delitos de Frei Luis foi o de preferir ler o Antigo Testamento em hebraico e não pela versão oficial do ConcÃlio de Trento, ou seja, a Vulgata de São Jerónimo. Outra acusação era ter feito uma tradução para castelhano do Cântico dos Cânticos 2, prática proibida pelo mesmo ConcÃlio.
A perseguição a Frei Luis de León foi uma de entre milhares e representa exemplarmente como a ignorância e o fanatismo (em «Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, [n]o mundo!») têm um poder que os nossos dias classificam de terrorista. Ao mesmo tempo, a tranquilidade com que cumpriu a pena havia de ficar célebre. Regressado à sua cátedra salmanticense, em 1577, recomeçou a aula com as estóicas palavras: Dicebamus hesterna die (‘dizÃamos no dia de ontem’ ou ‘como Ãamos dizendo’3).
Os exemplos históricos de heroÃsmo, que serviram de base à educação europeia até ao século xx, causam admiração, mas dificilmente poderão ser replicados: o contexto histórico é diferente, o valor da coragem é diminuÃdo e ridicularizado; a opinião pública segue uma ortodoxia que os debates (ou tentativas de debate) não movem; a aceitação tem medidas matemáticas, fórmulas e números de amizades. Em suma, os exemplos não comovem, o conhecimento é substituÃdo pelo motor de busca, o sucesso é medido em Ãndices, seriações e listas e «amigo» deixou de ser um parente etimológico do verbo «amar» para ser uma categoria virtual.
O reinÃcio deste blogue (continuador natural e  de um outro, que escrevi entre Agosto de 2006 e Dezembro de 2011 e cujo fim teve motivos ordinários e extraordinários) não é, porém, o retomar de uma cátedra, mas de uma conversa. De amigo, que nasceu com o verbo amar lá dentro.
Estava eu a dizer…
1 Ver o processo da Inquisição aqui.
2 No discurso que fez por ocasião da entrega do prémio, Frederico Lourenço, vencedor do Prémio Pessoa 2016 (e o mais recente tradutor da BÃblia), salientou exactamente que já foi motivo de perseguição a tradução dos textos sagrados para uma lÃngua vulgar. Contudo, Frei Luis de León seria inocente.
3 Como Ãamos dizendo é também o tÃtulo das memórias da vida de José Hermano Saraiva (1919-2012).