A expressão que uso no título deste texto tem sido reproduzida em várias notícias e artigos de opinião que se têm referido às pichagens numa obra «minimalista» do escultor Pedro Cabrita Reis, em Leça da Palmeira, berço de António Nobre1, município de Matosinhos.
Portugal é um país muito engraçado de analisar porque é um lugar onde tudo é polémico: construção de aeroportos, barragens (com um exemplo recente, por causa das cheias no Mondego), caminhos-de-ferro2, museus, extensões das linhas do metropolitano (os meus casos favoritos), metros de superfície prometidos e nunca construídos, igrejas, urbanizações e outros edifícios, feira popular, terminal de cruzeiros, demolições de edifícios históricos, entre outros (incluindo jantares no panteão, colecções de pintura, a vedação de um miradouro, etc.). Julgo que só a construção de estádios esteve isenta de críticas (agora é mais comum fazê-las; reclama-se que se deveriam ter construído hospitais, mas nem a construção de unidades de saúde desmerece alguma polémica).
O que parece estar em causa é o desgosto que temos (incluo-me neste grupo) em ver diante dos nossos olhos a mudança na cidade que conhecemos como a conhecemos. Também se fala no dinheiro que se gasta neste ou naquele empreendimento, em relação a outras necessidades que o país tem e a que não consegue dar resposta (os cidadãos e as cidadãs não são avisados/as, por exemplo, de que muito financiamento vem da União Europeia, decorrente de concursos para determinados fins, e que o dinheiro não pode ser deslocado para outras despesas).
Além dos exemplos apontados (e que se poderiam multiplicar por outras cidades e cronologias3; o que é mais notável no pequeno levantamento feito é ver as datas das notícias e o que não foi feito), é comum um minidebate (normalmente de fraca duração, mas agora amplificado pelas redes sociais) sobre as obras de arte em espaço público. Neste âmbito, também não escasseiam casos de vandalismo que demonstram descontentamento popular, que excede em muito peças de arte não figurativa, como a de Pedro Cabrita Reis, ou então extensas críticas a outras obras4:
- A estátua a Fernando Pessoa, do escultor Lagoa Henriques, foi objecto de grandes críticas (muito pequena e modesta… tudo o que Pessoa foi em vida), sobretudo porque fica muito próxima da estátua monumental do poeta quinhentista António Ribeiro Chiado.
- Não muito longe, no Largo Barão de Quintela, a estátua a Eça de Queirós, de Teixeira Lopes, é de bronze porque foi preciso substituir a original, de mármore (e que se encontra actualmente nos jardins do Museu de Lisboa — Palácio Pimenta, no Campo Grande), por causa do vandalismo (e destruição). O motivo era que a alegoria da Verdade, um corpo feminino nu nos braços do escritor (a alegoria do poder do Marquês de Pombal é bem mais pacífica, e nada tem que ver com o clube desportivo do Campo Grande), era uma «vergonha» (palavra que prestigia o pichador de Leça).
- Ainda hoje se discute se aquele D. Pedro IV, na praça a que nunca deu nome, não será o imperador do México (a altura em que está é excessiva e desproporcional: talvez o pior exemplo de disposição de arte no espaço público).
- Os bustos que figuram um jogador de futebol no Aeroporto da Madeira foram muito falados e criticados. Ainda no Funchal, dificilmente se reprime um sorriso (ou uma gargalhada) com a estátua de corpo inteiro do homenageado por causa do volume nos calções.
- O monumento ao 25 de Abril de João Cutileiro (no alto do Parque Eduardo VII) talvez seja o melhor exemplo recente de incompreensão pública pela arte. Sim, tem forma fálica, mas… e o obelisco da Praça dos Restauradores?
As estátuas mencionadas (apenas algumas de que me lembrei) já não causam polémica porque se tornaram parte da nossa memória (e todos têm um retrato com Pessoa no Chiado). Deixaram, foram deixando ou deixarão de ter um efeito-surpresa que suporte as críticas durante muito mais tempo (em particular nessa amnésia chamada redes sociais). No entanto, de modo nenhum os cidadãos e as cidadãs devem aceitar impassíveis a disposição da arte em espaço público. Talvez devessem, porém, colocar as suas opiniões em perspectiva e lembrar que o que é hoje tradição já foi inovação, como dizia o imperador Cláudio citado por Tácito.
1 Confesso que só sei o que é Leça por causa desta circunstância literária. Só aprendi o que era o porto de Leixões mais tarde.
2 Garrett e Herculano eram contra a construção do caminho-de-ferro (Flaubert também; dizia que as viagens ficavam mais curtas, permitindo aos estúpidos encontrarem-se mais depressa — parecia a premonição do aparecimento das redes socais). Eça de Queirós, n’Os Maias, coloca na boca do abade Custódio esta referência à linha-férrea (na época a que a história se reporta, apenas até ao Carregado): «O País não estava para essas invenções; o que precisava eram boas estradinhas…» O «pobre diabo» Cavaco Silva ouviu-o.
3 Lembro que levou décadas a erecção da estátua a Camões. Inaugurada em 1867, localiza-se na Praça de Camões, entre o Chiado e o Bairro Alto, e é da autoria de Vítor Bastos, o escultor da estátua ao grande orador José Estêvão, no jardim de São Bento, atrás da Assembleia da República.
4 Já agora: faltam estátuas em Lisboa. A Fernão Lopes (existe uma na Biblioteca Nacional, mas lá também estão outros escritores que têm estátuas noutros lugares, como Eça e Camões), Gil Vicente, Cardoso Pires, Irene Lisboa (que nem tem uma placa evocativa na casa onde viveu, na Estrela), José Saramago, para mencionar apenas escritores (nota para o autor deste blogue: fazer um itinerário de estátuas e nomes de ruas de escritores portugueses em Lisboa).